Disneyland XXI
- Vamos espreitar?!...
O nosso filho exultou. Disneyland XXI, a terra dos sonhos cor-de-rosa, dos heróis, vilões, seres fabulosos, cenários coloridos em goma e chocolate, das canções aventura. Estava lá tudo, todo o ideário na sua mente. Já eu e ele, os seus pais, desconfiávamos do que poderia aquilo ser para nós em terra de sonhos.
Entrámos. O tapete era de relva sintética. As mesas de plástico imitando madeira. Os quiosques lollypops piscavam frenéticos e à sua volta rodopiavam enérgicos jovens de rasgados sorrisos, vestes coloridas anos 50 e graciosos movimentos nos seus patins.
- É a primeira vez? - abeirou-se uma jovem, direta e sorridente.
Acenámos que sim, julgando trazer na testa algum post-it perdido.
- Posso trazer-vos algo? - e estendeu uma lista.
Ele adiantou-se pedindo uns refrescos e ficámos a olhar. Não muitas pessoas nas mesas, mas sim, algumas famílias, com ar descontraído conversando entre si. Passado pouco tempo, a rapariga voltou.
- Podem seguir-me agora.
Fomos no seu encalce, eu já meia arrependida, ele divertido, e o nosso filho maravilhado. Entrámos num edifício meio obscuro e bastante silencioso. O chão estava coberto por alcatifa e não se ouviam os nossos passos. De vez em quando, cruzávamo-nos com alguns grupos, que seguiam silenciosos e absortos.
Entrámos então numa sala e o espectáculo que se deparou à minha frente consumiu-me. Eram prateleiras gigantes e profundas onde uma imensidão de gente se alinhava a dormir. Em baixo, no chão, as crianças e os idosos. No piso superior, os jovens. Por cima, os adultos.
A jovem sorriu-nos e fez sinal de passagem, estendendo-nos três pequenas pílulas.
- Agora tomam isto e deitam-se.
- Quanto tempo vai durar? - perguntei de rajada.
- Dez a quinze minutos.
Eu e ele entreolhámo-nos. Não queríamos que o nosso filho fosse o primeiro a acordar.
- Eu venho acordar-vos.
- Primeiro a mim - disse ele, gentil, oferecendo-se para estar presente quando o nosso filho acordasse.
Ela anuíu com uma leve inclinação de cabeça.
Tomámos as pílulas e avançámos para as prateleiras. Ficámos a ver o nosso filho adormecer, com um leve estrépito do corpo, e logo depois um mergulho e rasgado sorriso e riso sem som na sua viagem. Despedimo-nos num relance assegurador e avançámos, cada um para um lado do nível superior, eu super incomodada com tudo aquilo.
Deitei-me, entre um ror de gente a dormir na quase obscuridade do local. Fechei os olhos, aquietei o corpo e a respiração. De repente, entrei na Disneyland XXI.
Era um recinto de feira, enorme, gigante, talhado numa encosta cujo cume mal discernia. De um lado e do outro, uma imensidão de tendas, roulotes, quiosques, cada um com seu décor e ambiente e comes e bebes e música e gente, muita gente, gente ruidosa e estridente. Na alameda central, um décor multicolor, unido por fios, balões e fitas, acolhia árvores, canteiros de flores, lagos, fontes, pontes, esculturas.
Fui sendo ultrapassada por um ror de gente, enfiada nos seus avatares estranhos e cómicos. Elefantes azuis nos mais tímidos e humorados, avestruzes de plumas nos de ideário cabaret, budas chineses para os de luxúria preguiça, imponentes centauros para os de musculado ego, esfinges com serpentes para os misteriosos e enigmáticos, brancas de neve a enganar, anões rosados e bêbados, ratos mickeys acelerados de coca, patos donald cuspindo o pataquês em roda. E de repente, no meio daquela explosão toda, apercebi-me de que também eu devia envergar o meu avatar.
"Qual seria?" Não dava para ver, olhar para mim, eu movia-me apenas na faixa binocular dos meus olhos - e presa por um fio ao som longíquo da minha respiração. Não parecia haver espelhos por ali. "Talvez a branca de neve..." Afastei o pensar disso. E olhando na direção de uma tenda, vi um elefante azul de robe cor-de-rosa, no meio de umas quantas outras figuras, agitando a pata na minha direção:
- Rita! Rita!...
Aquela voz. Aquele figurino. Inconfundível. Era a Marta!
Acenei de volta, meia divertida, meio nauseada com toda aquela panóplia, decidindo, definitivamente, não parar nas tendas. Álcool, drogas, má comida e muito açúcar, tudo circulava ali sob todas as formas e sem qualquer limite. É certo que nada daquilo existia deveras, tudo se passava dentro das nossas mentes. E no entanto, que absurdo, as pessoas pagavam para ter experiências mundanas que, tirando os fatos e cenários, em tudo se assemelhavam às da vida real.
Não compreendia, não me fazia sentido. E nestes pensamentos dei conta que ía subindo a encosta, largando lentamente as tendas, os ruídos, as cores garridas. Quando cheguei ao cume, por mais absurdo que isso pudesse ser, deparei-me com uma vedação de estacas e cordas e um letreiro que avisava "Não passar". E os meus pés tocaram a água de um imenso, lindo, mar azul.
"Não passar"? Mas porque não passar? Que coisa estranha! Se era para não passar, não devia estar ali. De repente, a luz acedeu-se no meu espírito: "Claro, isto é um chamariz: se quiseres ir mais além, tens de pagar - e não deve ser pouco!...
O meu olhar perdia-se no horizonte, com alguma neblina ao fundo, que célere se levantou, desvendando um lindo edifício a uns 100 metros de distância. Era um edifício gracioso, imponente mas lânguido, transparente, como que de cristal, com uma larga plataforma de acostagem, cujas margens tocavam as águas. Uma embarcação singela, silenciosa, atracou. De dentro saíram alguns vultos, uns quatro peixes-espada de bigodes à Salvador Dalí, envergando gabardines caqui. Com grandes acenos de cabeça, foram avançando, dirgindo-se à grande porta do edifício, cujo puxador redondo e dourado se abriu, revelando uma imensa luz branca. Dela saíu então um vulto alto, esguio, elegantíssimo, envergando uma veste ondulante de finíssima filigrana, cujos minúsculos pontilhados se agitavam, brilhando à vez, murmurando coisas.
O vulto deslizou na plataforma, no espaço entre a porta e os peixes-espada, e à luz do sol pude ver o seu rosto alvo, calvo, impoluto. Com um tempo lento que me pareceu infinito, um gesto belo como nunca vira - e uma clareza de foco e direção que me trespassaram, o vulto olhou na minha direção e entrou-me de olhos pela alma dentro. A pele branca, branca, iluminou-se de pontilhados sussurrantes. Falavam de mim. E alargando o tempo e o espaço até ao absurdo, o vulto sorriu-me. Orlas azuis desenharam-se pelo seu rosto, como fitas de espumas de mares revoltos. E ouvi a sua voz no mais dentro de mim, no mais fundo do fundo do meu coração:
- Tens de regressar às águas.
Como a onda que devagar se ergue para depois num ápice se abater, o vulto deslizou levando os peixes-espada para dentro do edifício. Fiquei sem pinga de sangue, agarrada às cordas, emitindo um som que me desconhecia, mas que de imediato soube. O meu avatar era esse, claro, um golfinho.
O mar começou a subir, ameaçando afundar a nave de cristal. Passei as cordas. Entrei naquela água. E subitamente fui agarrada.
- Acorde!
A rapariga sorriu-me, compreensiva, fazendo um sinal de silêncio e para que a seguisse.
Levantei-me e comecei a andar atrás dela, percorrendo de volta todo o caminho até à esplanada. Percebi muitas coisas ali. Que eu devia ter tardado demais no sono. Que a Disneyland XXI me tinha dado exatamente o que eu queria. Que a manipulação dos sonhos, dos medos, das emoções, era algo mais complexo e avançado do que eu imaginara. Sentia algum medo. Uma imensa vergonha. Sabia que ía ter com a minha família mas não sabia o que me esperava.
Quando cheguei à esplanada, o meu filho saltou-me nos braços para contar de como tinha visto o mickey, o pato donald, o dumbo e o rei leão. Já ele, olhou-me com aquele ar levemente desiludido: "Não foi nada de especial, realmente tinhas razão, isto não vale o bilhete...".
Sentei-me à mesa com eles, longe, muito longe dali. Sentia nas entranhas a profundidade daqueles olhos aquáticos pousados em mim. O golfinho clamava pelas águas. E eu só pensava quando iria poder voltar.
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