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A mostrar mensagens de novembro, 2008

Folha #7_mais um feijãozinho na terra

( à mulher das milhas ) Andou, andou, mundo e meio calcorreou, Coleccionando risos, despidos e fados, Topando sempre de frente, em bravura mui valente, E se lhe houve os olhos baixos, Foi por pausa em vazio evidente. Na volta da vira, amor reencontrado, Por vero deu fruto, de imediato. E no fio do seu relato, Duas lágrimas pontuam em moldura um meu sorriso. Parabéns, querida amiga!, Por esse mais belo da vida, essa soma mister, De um mais um ser um, maior que dois, múltiplo de todos, Para além de ti, Por ora, infindo, em ti, Faúlha em galáxia interina, Que te reverbera em brilho, (e a mim da comoção ao suspiro!)

Folha #6_frangelo

Frangelo era o Ângelo que vivia na casa ao lado. Um tipo perfeitamente execrável. Mal cheiroso, maltrapilho, sisudo, sozinho, ele e o seu saco do lixo. Nunca olhava de frente. Mas vociferava coisas terríveis, ininteligíveis, noite alta, sempre só noite alta... Eu dizia bom dia, obrigada, deixe estar, e ele não respondia, não olhava, seguia. Eu passava por ele de carro, e ele sempre a pé, passos rápidos, decididos. O Ângelo despertava-me uma enorme curiosidade. Onde ía? Trabalhava? Como pagava a casa, as contas?... Bati-lhe à porta, por azeite, nem abriu, e estava lá, sabíamo-lo ambos. Um dia o páteo inundou, ele apareceu, vassoura na mão, a varrer a água, todo ele pingava. Estendi-lhe o guarda-chuva. Não disse nada. Fiquei ridícula, atrás dele, no rasto do seu silêncio, no lastro das varridelas... O sifão estava entupido, pois claro, era isso! As velhas sorriram-lhe agradecidas. Ele saíu sem palavra, mais a vassoura. Um dia, mais tarde, no messenger, encontrei um Frangelo, pusémo-nos a

Folha #5_burilatto

Burilam os dedos nos tampos das mesas dispostas e as canetas hirsutas sob as molas gastas. Burilam as gravatas laças, depostas em camisas tintas, línguas de rios de nada... Burila a voz que comanda o comando das vozes, demais, em silêncio. Burilam-se os pensamentos, lançando perguntas de intrépido tom, e todos fingindo isso não ver, todos a aquiescer, sob a voz do comando. Burila-se o respirar, preso, forçado, sob toda aquela tensão, que uma ampla inspiração por demais causaria indesejada atenção. Burila-se o calcanhar, musicando a memória em melodia qualquer, que afinal tem sentido, relembra algo perdido e muito querido. O burilo acaba quando ela entra na sala, com um oito à saia, qual planador, pousando com graça; e da lista que lê, olhos baixos levanta, logo outro condor, até mim que desvio, pressentida pena. Não disse o meu nome, não foi desta vez, burilo até casa, os meus passos sem graça.

Folha #4_a fisga

Esta madrugada acordei com o sonho estranho do passamento da minha avó. Foi um sonho cheio de silêncio, claridade, respeito afectuoso e solene. No sonho apenas vi o meu avô, encostado à parede fria de uma ala de um claustro, chorando baixinho sob a pala do seu alto tecto, sozinho, enquadrado por duas altas colunas quase difusas no cenário todo ele marmóreo da ala do claustro, lembrando-me as infinitas tardes em que ainda hoje o surpreendo, quando o visito e o encontro sentado sob a pala do telheiro zincado da sua casa. No sonho, era muito forte a presença da minha mãe, que preparara a ida das duas filhas àquele lugar como até hoje prepara as refeições em família: com tempo e muito amor. Estávamos, eu, a minha mãe e a minha irmã, num pequeno edifício rectangular, todo envidraçado, colocado em frente à ala do claustro, do lado esquerdo. Vi, portanto, o meu avô ao fundo, à direita. O pequeno edifício, inundado da luz branca do mármore que em altas colunas se erguia em frente, era como uma

Folha #3_insignificato

A vida… O que realmente importa... A essência que retorna à luz do sol, e refulge sobre as águas, agora calmas, de um mar explosão. Assim somos. Insignificantes nadas devagar esculpidos na maré batente. Agregamo-nos. Tomamos forma. E somos empurrados para longe das margens. Débeis rendilhados flutuantes, desfrutamos o prazer do sol e das águas tépidas da superfície. Agregamo-nos mais. Ganhamos peso. E começamos a submergir. Na descida vertical, descobrimos mundos fantásticos, ocultos à luz. Para nos protegermos do frio, reforçamos a nossa couraça; envoltos em escuridão, tornamo-nos opacos; cruzando a linha das mais baixas correntes, conhecemos enfim a quietude; e ao bater no fundo, finalmente o silêncio. Enterram-nos camadas imperceptíveis. Ganhamos pressão. E no interior da couraça, em torno do insignificante nada que nós éramos, gira agora uma imensa energia, vibrante, desperta, fortalecida. A couraça fende, depois explode, e o insignificante nada que nós éramos dispara como um projé

bios #4_o João

...estou no sétimo ano, a caminho da escola, numa manhã de Inverno. O que mais aquece a dura caminhada, feita ainda escuro e sob um vento gélido, é a probabilidade de me cruzar com ele à entrada do edifício e sem poder evitar olhá-lo nos olhos dizer: «bom dia!». Como estará vestido? Que missivas estarão hoje inscritas no brilho dos seus olhos? Que circunstâncias nos poderão hoje aproximar além do normal? As perguntas, em torrente, animam curtas-metragens ficcionais que fazem as minhas delícias, pois aquecem (ou pelo menos esquecem) o frio no nariz e o tempo do caminho: ficar atrás dele na fila do bar; ao seu lado na mesa da cantina, juntos em algum trabalho de grupo ou equipa de jogo… Se é dia de aula de ciências da natureza, há um pico explosivo de expectativa: é que nessa aula em particular partilhamos a mesma carteira! Entro na sala de aula, sento-me na minha carteira, fila do meio, a meio da sala; o professor faz uma pergunta e ele responde; todos se voltam para o ouvir, na carte

bios #3_a gaveta

...mil vezes arrumada, outras mil desarrumada, eu entretinha-me a rever o seu conteúdo, a actualizá-lo função das minhas preferências em brincadeiras, aquela gaveta era a medida das minhas posses. Lembro-me de uma vez, atrasada para o jantar, arrumar tudo à pressa, melhor, empurrar os brinquedos lá para dentro, soerguida já pela orelha na mão do meu pai. E ficar o jantar todo a pensar nos meus ricos pertences tão vilmente atirados na escuridão... ************************ ...quando me sentei diante dela não sabia bem que idade tinha. Ao abri-la, logo os olhos saltaram para a mala “festas felizes” às riscas azuis e brancas, a malinha-baú “hello-kitty”, a mala cor de rosa “dias felizes”, a mala vermelha estojo de médico e seus instrumentos (para a minha irmã mais nova, de tortura), a colecção de borrachinhas de cheiro, de afia-lápis, porta-chaves, folhinhas queridas, lápis, lapiseiras e canetas, cromos “Candy Candy”, “Dias Felizes” e “Topo-Gigio”, conjuntos envelope e papel-carta aromatiz

bios #2_a casinha

...feita para ser garagem, sempre antes outra coisa, aliás como em muitas coisas na vida dos meus avós, elásticos para esperar, suportar e adaptar. Nos três meses de verão, a casinha fervilhava, ora montada em consultório médico, cujos adereços-chave eram as agendas de secretariado caducas oferecidas pela minha mãe; ora surgindo esplêndida como supermercado, em que aí não podiam faltar as embalagens de leite, manteiga, ovos, cereais, etc, devidamente lavadas e limpas pela minha avó; ora como bastidor de passerelle, ao que não faltavam sacos do lixo azuis convertidos em saias, camisolas, xailes, enfeitadas com laçarotes ou faixas em papel higiénico; ora ainda como cenário épico de histórias mil, mantas sobre caixotes improvisando montanhas, ferramentas do meu avô servindo oficinas da nossa infância…

bios #1_o baloiço

...esse amigo das horas, pendurado à minha medida, cordas velhas, já roídas, tábua de madeira queimada, os restos oficinais do meu avô… sentava-me nele, arrastando pés e poeira, «que vai ser hoje?...», massajando os pés, as bolotas do sobreiro, crescem, imagino-as foguetões, e eu piloto espacial, adrenalina subindo, o baloiço ganha balanço, mais alto, mais alto, o ramo hesita, a corda range, mais alto, mais alto «olá Houston, daqui Armstrong», o foguetão vai cair, ou aterrar?, escolho o final feliz, abrando, o ramo oscila cada vez menos, o «rnhec» da corda dilui-se na tarde amena, estou descalça, coberta de poeira, as unhas dos pés negras, exulto só de evocar em espírito a palavra: «porcalhona!», assim dita pela minha avó, assim cheia de um nojo carinhoso, o piloto espacial cruza o portal intergaláctico, avança destemido por entre as vaias do inimigo, despe-se no ponto de controlo e… oh, vai virar princesa!... mas essa é outra emoticena! ************************* ...esse amigo das hora

folha #2_sorriso de outono

(para o homem a sul) sorriso de outono as mãos a fugirem, para se dar, sob capas de chuva, fragmentos de música e roçagares de corpos . as mãos encontradas, sorrindo felizes, para lá de nós, vestidas em alta costura de entediantes teias, as conversas interessantes... não sei quanto tempo durou, essa primazia dos corpos, orquestrada em dedos, suaves sulcos caminhos, que a chuva apagou. ficou-me este sorriso de outono, suave, suave, em desprendida queda.

folha #1_da estação

É no Outono que nos caem as folhas... De sonhos de verão, suspiros primaveris, aconchegos invernais... A Folha #1 testemunha a estação, que veio tarde, mal chove ainda, e de luvas, nada! O meu primeiro cd (leia-se, caderno diário) aberto... Uma estância para visitar. À vontade. Como calhar. Mais ou menos pegada, deixa-se sempre qualquer coisa no caminho... E assim cai esta primeira folha.