Folha #4_a fisga
Esta madrugada acordei com o sonho estranho do passamento da minha avó.
Foi um sonho cheio de silêncio, claridade, respeito afectuoso e solene.
No sonho apenas vi o meu avô, encostado à parede fria de uma ala de um claustro, chorando baixinho sob a pala do seu alto tecto, sozinho, enquadrado por duas altas colunas quase difusas no cenário todo ele marmóreo da ala do claustro, lembrando-me as infinitas tardes em que ainda hoje o surpreendo, quando o visito e o encontro sentado sob a pala do telheiro zincado da sua casa.
No sonho, era muito forte a presença da minha mãe, que preparara a ida das duas filhas àquele lugar como até hoje prepara as refeições em família: com tempo e muito amor. Estávamos, eu, a minha mãe e a minha irmã, num pequeno edifício rectangular, todo envidraçado, colocado em frente à ala do claustro, do lado esquerdo. Vi, portanto, o meu avô ao fundo, à direita.
O pequeno edifício, inundado da luz branca do mármore que em altas colunas se erguia em frente, era como uma janela de observação, separada mas próxima, entre os vivos e os mortos.
Da esquerda, surgiu uma senhora, trazendo consigo um barulho de chaves. Talvez fosse a guardiã daquela invulgar casa mortuária. Passou junto ao vidro, do lado de fora, e lançou sobre o meu ombro uma calorosa saudação, que eu entendi dirigida à minha mãe, que estaria atrás de mim, do meu lado esquerdo. A senhora confundir-se-ía com uma qualquer vizinha da minha avó: baixa, cabelo em permanente meio desfeita, de bata e chinelos, pele crestada pelo sol. E a sua saudação inaudível ecoou em mim aquele “Eh, vizinha, atão?”, mão em pala sobre os olhos, que é o cumprimento das vizinhas à sua passagem quando atravessa a rua.
A voz, o cheiro e o calor da minha mãe indicavam-me o que fazer… Rodei então para a direita e vi duas carteiras escolares em madeira clara, daquelas que havia na minha escola primária e nas quais me sentava para assistir às aulas e fazer os deveres ditados. Percebi que uma era da minha irmã e outra minha, símbolos da nossa presença e do nosso tributo. Sobre as carteiras havia papéis, textos, fotografias, que eu entendi serem um colectivo tratado de memórias entre as netas e a sua avó. Pressenti que aqueles papéis seriam as memórias da minha mãe, saídos talvez do seu baú “caixinha de pandora” e distribuídos entre as duas carteiras como um rosário desfiado “quando o galo cresceu para esta”, “quando aquela começou a andar”…
Aqueles papéis sobre as carteiras poderiam ser flores nas nossas mãos de crianças eternamente gratas. Mas faltava ali qualquer coisa… Senti a minha irmã agitar-se num gesto de vida e rebeldia infantil, e também eu própria procurava ainda um símbolo mais adequado ao nosso tributo.
Então a voz, o cheiro e o calor da minha mãe apontaram, para lá do vidro, a senhora. Atrás dela passava uma tábua de madeira, deslizando verticalmente sobre o marmóreo chão, como a tábua de um caixão ainda por construir. E nas mãos da senhora o símbolo que procurávamos: uma fisga de atirar, que a nossa avó nos ensinara fazer para catapultar bolotas caídas do velho sobreiro frente à casa.
As duas fisgas tinham sido mandadas fazer de propósito pela minha mãe, e, num assentimento mudo, tanto eu como a minha irmã as aprovámos de imediato. Um riso traquinas encheu de repente aquele silêncio todo, que éramos nós as duas, já adultas, a rir deste pormenor insólito do meu sonho “uma fisga num enterro”! Só mesmo a nossa avó poderia inspirar tamanha partida! E foi ainda neste riso que acordei.
Foi um sonho cheio de silêncio, claridade, respeito afectuoso e solene.
No sonho apenas vi o meu avô, encostado à parede fria de uma ala de um claustro, chorando baixinho sob a pala do seu alto tecto, sozinho, enquadrado por duas altas colunas quase difusas no cenário todo ele marmóreo da ala do claustro, lembrando-me as infinitas tardes em que ainda hoje o surpreendo, quando o visito e o encontro sentado sob a pala do telheiro zincado da sua casa.
No sonho, era muito forte a presença da minha mãe, que preparara a ida das duas filhas àquele lugar como até hoje prepara as refeições em família: com tempo e muito amor. Estávamos, eu, a minha mãe e a minha irmã, num pequeno edifício rectangular, todo envidraçado, colocado em frente à ala do claustro, do lado esquerdo. Vi, portanto, o meu avô ao fundo, à direita.
O pequeno edifício, inundado da luz branca do mármore que em altas colunas se erguia em frente, era como uma janela de observação, separada mas próxima, entre os vivos e os mortos.
Da esquerda, surgiu uma senhora, trazendo consigo um barulho de chaves. Talvez fosse a guardiã daquela invulgar casa mortuária. Passou junto ao vidro, do lado de fora, e lançou sobre o meu ombro uma calorosa saudação, que eu entendi dirigida à minha mãe, que estaria atrás de mim, do meu lado esquerdo. A senhora confundir-se-ía com uma qualquer vizinha da minha avó: baixa, cabelo em permanente meio desfeita, de bata e chinelos, pele crestada pelo sol. E a sua saudação inaudível ecoou em mim aquele “Eh, vizinha, atão?”, mão em pala sobre os olhos, que é o cumprimento das vizinhas à sua passagem quando atravessa a rua.
A voz, o cheiro e o calor da minha mãe indicavam-me o que fazer… Rodei então para a direita e vi duas carteiras escolares em madeira clara, daquelas que havia na minha escola primária e nas quais me sentava para assistir às aulas e fazer os deveres ditados. Percebi que uma era da minha irmã e outra minha, símbolos da nossa presença e do nosso tributo. Sobre as carteiras havia papéis, textos, fotografias, que eu entendi serem um colectivo tratado de memórias entre as netas e a sua avó. Pressenti que aqueles papéis seriam as memórias da minha mãe, saídos talvez do seu baú “caixinha de pandora” e distribuídos entre as duas carteiras como um rosário desfiado “quando o galo cresceu para esta”, “quando aquela começou a andar”…
Aqueles papéis sobre as carteiras poderiam ser flores nas nossas mãos de crianças eternamente gratas. Mas faltava ali qualquer coisa… Senti a minha irmã agitar-se num gesto de vida e rebeldia infantil, e também eu própria procurava ainda um símbolo mais adequado ao nosso tributo.
Então a voz, o cheiro e o calor da minha mãe apontaram, para lá do vidro, a senhora. Atrás dela passava uma tábua de madeira, deslizando verticalmente sobre o marmóreo chão, como a tábua de um caixão ainda por construir. E nas mãos da senhora o símbolo que procurávamos: uma fisga de atirar, que a nossa avó nos ensinara fazer para catapultar bolotas caídas do velho sobreiro frente à casa.
As duas fisgas tinham sido mandadas fazer de propósito pela minha mãe, e, num assentimento mudo, tanto eu como a minha irmã as aprovámos de imediato. Um riso traquinas encheu de repente aquele silêncio todo, que éramos nós as duas, já adultas, a rir deste pormenor insólito do meu sonho “uma fisga num enterro”! Só mesmo a nossa avó poderia inspirar tamanha partida! E foi ainda neste riso que acordei.
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