madame miau

madame miau desce a rua devagar.

apesar da chuva, madame miau não se apressa, antes deixa que ali se misturem as suas lágrimas. ela não sabe porque chora assim. é um miado, um lamento, uma tristeza funda por todas as tristezas do mundo, mesmo as que não conhece.

houve tempos, em que madame miau não chorava assim, em que não chovia assim, em que as ruas não ficavam molhadas por tanto tempo, nem inundavam as casas, as coisas, transbordando em tudo.

madame miau aperta o casaco sobre o peito e dobra-se mais. o coração ainda bate depressa demais, o seu sexo ainda arde demais, a casa que abandonou ainda está perto demais.

teria sido impossível que adivinhasse o amor assim. fora ingénua, demasiado ingénua, talvez... e agora, os seus desenhos navegavam rua abaixo, sangrando em rios de tinta como por dentro ela própria se sentia sangrar. os seus desenhos, atirados borda fora, daquela mesma janela onde tantas e tantas vezes se debruçara a fumar, depois de tantas e tantas vezes amar; desenhos como cartas, escritas a dois, diálogos de um mundo em construção, um mundo belo, incomparável, indestrutível...

demasiado ingénua, madame miau!

uma folha desbotada esbarrou-lhe nos pés. agachou-se para a apanhar. queria perceber o que tinha sido, aquele desenho, que fragmento, que momento, que emoção... mas não conseguia. a folha, ensopada, amachucava-se dócil sob as suas mãos geladas. resolveu comê-la. sim, iria engolir aquela vida a dois, que deixava para trás, para nunca mais. iria engolir cada lágrima, também.

um miado longo e angustiante encheu a noite. madame miau saudou, por fim, a lua. finalmente, parara de chover.

Comentários

BlueTraveler disse…
e se eu te oferecer um abraço?
besos

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