Xumn, o Rei

Justeza a ti, Senhora. Lágrimas de água flutuando dispersas sobre os meus cabelos. Camponeses rindo suaves melodias de infantis novelas. O sopro da maga fêmea ondulando brisa. O braço do mago vagueando alhures. Quem sabe o que sinto discorre no brilho uns olhos viris. A vontade pulsa selvagem ainda, imberbe, ainda, expectante, sempre. Quem calar infâmias com demagogia vai ferir Aquiles no seu calcanhar. Ode aos Heróis. Ode ao ousar de retesada fibra. Ferir o presente sem temer seu eco é salto imortal sobre o vale perene. O feno acicata suave a face que se dá. Ao destempero do seio seminú, todos os cânticos, todas as danças. O olhar cruzado de desejo instila a derrocada no topo da montanha. E o olho da águia vê mais que nós todos juntos em demasia. Contando continhas contadas favinhas são pés pulsando vida no pó indigente. Um rosto que se acende. Uma alma revelada. Somos tanto - somos nada.

E em tudo isto que escrevia, Xumn empalidecia. Sob o sol laranja de um dia em queda, sobre a areia quente de um deserto imenso, o homem soltava o ser que lhe estava dentro. Toda a comoção votava aos ventos do sul. E o seu ser pulsava ante um destino hostil. Vá que se esquecesse um dia de tudo. Vá que acabasse como vagabundo. Nada poderia em si apagar o berço de príncipe e o que isso lhe foi. Malgrado os azares da sorte ditada, Xumn era Rei da terra que amava. Lestos, sentia, vinham em bando, duzentos mercenários, tomar-lhe a coroa, as terras, as gentes - e toda a fortuna que multiplicara. Brindou-os com seu cuspo. Tombou na terra quente. O corpo sovado ofertou-se displicente. Entendeu o sofrimento essencial parte da ascese divina. Xumn morria.

Não tenho pena de mim. Não tenho pena dos meus carrascos. Não pretendo entendê-los. Nem através deles entender o destino, destinatário divino, em nada disso creio. Tudo se resume a um seio. A um calor rememorado, de um passado, memória inscrita em mim, vida e obra não escrita de mim. Sou Senhor. Serei sempre o Senhor. Tão somente e apenas de mim.

O olho da águia turva-se ante o raio descendente de uma luz desmedida. Não houve luta. Não houve ferida. «Que morte tão doce!» - comove-se um bandalho. Eleva-se uma incrível boa energia. Duzentos corpos se dobram, como juncos, respeitosos - «quem dera não o houvéramos morto...» Mas porque morrem assim, tão docemente, os homens bons? E porque hão-de morrer, sempre assim, às mãos dos vis?

Justeza a ti, Senhora. Ao teu seio reluzente. À tua boca carnuda, saliente. Ao teu riso acolhedor. Ao teu incomensurável amor.

Tenho ainda a corda atada à cintura. Nunca gostei particularmente desta veste, mas exigem-me que a envergue. Eu não sou eu. Eu não serei eu enquanto for dos outros, para os outros, em nome dos outros. Prefiro aquele robe liso sem capuz. E os cabelos, gosto-os desordenados, como o dos artistas. Tentei a flauta, a harpa, o tambor. Nada em mim soou mais que um estertor. Não estava destinado a ser assim. Talvez um mártir, talvez... Agora contam como foi que morri: o olho da águia desferiu um raio e simplesmente caí. Todos os cobardes conjuram o milagre - para se salvarem da culpa indissolúvel. Como se iludem os homens - e assim conspurcam o prana e se escravizam de um karma. Como são loucos, infantis, todos eles, mordazes vítimas de seus ardis...

Estou a ir. Prestes a ir. Eis que me vou. Mas antes, ainda, uma palavra - para ti, Senhora. O teu amor me colocou nesta estrada de que não ousei desvio. O meu amor foi sério e incomensurável. Pude não saber nunca a sua medida. Pude desprezá-lo, de o sentir seguro, pude ser absurdo. E o pior é resumir no fim todo o desperdício desse livre arbítrio. Concluído filme do inacontecido, por estóica resistência à felicidade última, reverberando o riso feliz que te quartei a cada dia, egoisticamente. Perdoai-me, Senhora, perdoai-me, meu amor! Foi essa a única terra que não soube conquistar. Dela, de suas riquezas imensas, peroraram sempre meus cofres. Essa dádiva infinda de sofrida entrega que nos devolve gigantes quando por mínimos a ela nos subtraímos... Foi assim, Senhora, que vivi e entendi o teu amor: retribuindo-o em retesada inousadia. E é para ti, Senhora, que os meus olhos se voltam agora, última imagem, último fôlego, antes que tudo acabe - antes que em mim a vida se apague.

E Xumn partiu, corpo arrefecido, alma vagabunda num lago irreflectido.

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