Caivlan e a terra queimada

A terra queimada urgia revolta. E ele chegou, com o seu bastão negro, as sandálias carcomidas, os olhos plenos de luz. Suspirou, vagueou, virando restolhos com a ponta dos pés, apalpando o solo com o bastão. O sol estava alto, o céu limpo, nem uma nuvem, nem uma aragem. Acocorou-se, tomou na mão um pouco daquela terra, carbonizada, quente, sofrida. Cuspiu-lhe. Um broto jovem despertou da semente e espreguiçou-se verde na direcção do sol. Sorriu. "Caivlan, tu és preciso aqui!"

Aquela voz dentro de si não permitia enganos. Ele sabia-o. Mas será que o queria? Olhou em seu redor. A desmedida planície estendia-se a toda a volta, de casas distinguia apenas uma ou outra ruína, e os esparsos arvoredos para lá da linha do fogo dobravam-se como juncos feridos e moles. "Ficar aqui?". Logo a mente o assaltou em torrente, inundando o seu espírito de milhares de perguntas, traçando matrizes multidimensionais de probabilidades, coroadas pelo pior e pelo melhor que conseguia imaginar ali lhe pudesse acontecer. Mas não queria imaginar, queria sentir.

A torrente fez-se fio e inspirou aquele ar carbónico. Deixou-se ficar, assim, por tempo indeterminado. O sol desceu, uma aragem fria perpassou. Tinha que decidir-se. Ergueu o bastão e assentou-o com força no solo, cavando um pequeno buraco. A terra moribunda gemeu. Caivlan iria ficar ali.

Descobriu um aglomerado de pedras, cavou um buraco, juntou restolhos; do lume que se erguia reverberavam gemidos de seivas exangues; um restolhar nervoso chamou a sua atenção: era um coelho - teria jantar. E a primeira noite passou, menos mal do que esperara.

Na manhã seguinte, acordou cedo, com um sol claro que tudo inundava e sons de pássaros cruzando os céus. Haveria ali mais vida do que pensara. Levantou-se. Tapou o buraco, dentro as sobras do jantar e caminhou para oriente, na direcção do sol que ainda meigo o convidava. Vislumbrou uma ruína, talvez casa, abrigo de animais ou celeiro. À medida que se aproximava, a edificação revelava-se, pequena, baixa, mas parcialmente coberta. No primeiro dia, Caivlan encontrou uma casa.

A sorte parecia bafejá-lo. Dedicou-se a melhorá-la, durante todo esse dia e depois, entusiasmando-se, também nos dias seguintes. Primeiro reforçou a cobertura, limpou o interior, ajeitou para si um quarto. Depois, reconstruiu paredes amputadas e ampliou a cobertura, ganhando assim uma sala e um projecto de cozinha. Ao sétimo dia parou. Não para descansar, mas para uma incursão exploratória sobre a zona envolvente.

A cerca de um quilómetro, para norte, descobriu um riacho. Tomou banho e saciou a sede, com alguma prudência. Não adoeceu. A dois quilómetros, para oeste, descobriu um monte de entulho, e ali reuniu alguns utensílios, de que os mais significativos foram uma faca de gume ainda aguçado e um cântaro apenas quebrado na parte superior. As suas probabilidades aumentavam - Caivlan dançava e cantava como uma criança.

Ao décimo quarto dia, Caivlan estava perfeitamente instalado. Pleno de força e energia, pôde então iniciar a sua verdadeira missão naquele lugar. Preparou-se. No primeiro dia, meditou de sol a sol, em total imobilidade. No segundo dia, erigiu um pequeno santuário no que se poderia chamar pátio da casa. No terceiro dia, cantou e dançou em volta do santuário. Ao quarto dia, abandonou a casa e dirigiu-se ao epicentro da zona queimada pelo fogo, onde estacara o seu bastão. Retirou-o e a partir desse sulco cavou um buraco estreito e fundo, com a sua altura. No quinto dia, entrou no buraco e ali permaneceu todo o dia.

Sentia o calor que emanava do seu corpo infiltrar-se na terra e procurar, procurar, como uma vara, a fonte da vida. Estremeceu quando sentiu trespassar o solo rochoso em direcção a um enorme lençol de água. Reuniu todas as suas forças e começou a sugar aquela água na direcção do seu centro, numa ascese impossível, ao ritmo lento de cada lenta batida do seu coração. Repetiu este proceder durante seis semanas, um dia no buraco, outro em meditação activa em torno do santuário, outro em descanso absoluto e o quarto em actividades mundanas, que dedicava a tomar um banho no riacho, a caçar e cuidar da modesta horta que cultivava junto à casa.

Durante este tempo, não encontrou vivalma. Durante este tempo, a terra regenerou-se. Decidiu então descansar durante sete dias. Caminhou até pontos cada dia mais distantes. Até que, ao sétimo dia, reencontrou a estrada por onde tinha vindo. Passou um carro. Num impulso, começou a correr, acenando energicamente ao condutor da viatura. O carro parou.

Era uma mulher. Tinha os cabelos desordenados e fumava. Ofereceu-lhe boleia. Caivlan recusou gentilmente. O seu interior estremeceu. Há muito tempo que não falava com alguém. Sentiu profundamente a sua solidão, no contrário de um desejo imenso de companhia. E juntamente com esse, um outro desejo, mais carnal, de possuir aquela mulher - e ainda um outro, mais subtil, de amor humano.

A mulher era pouco mais jovem do que ele, embora ele, estava certo, aparentasse ser mais velho do que era na realidade. Nesta profusão de sentimentos e pensamentos, Caivlan sorriu, debruçando-se para a fitar mais proximamente. Sentiu que a mulher lhe agradava bastante e sentiu reprocidade no sorriso que esta lhe devolveu. Convidou-a para um passeio. A mulher acedeu.

O sol baixava já no horizonte, criando matizes douradas plenas de reflexos e sombras. À medida que caminhavam, sem trocar uma palavra, os seus corpos dialogavam, buscando intimidade e sincronia. Caivlan estava extremamente contente: o 68º dia trouxera-lhe uma mulher.

Nessa noite, Caivlan dormiu no carro da mulher. Ao nascer do sol do dia seguinte, despertaram ambos em silêncio, combinando encontrar-se novamente daí a sete dias. Caivlan partiu alegre como uma criança, mas no caminho mais e mais se voltava a focar na sua missão. Quando chegou à terra queimada, viu que esta reverdescia e a pequenos brotos verdejantes que despontavam na periferia sucediam-se ervas rasteiras, arbustos e jovens árvores até!

Desmedido foi, pois, o seu espanto e contentamento, quando descobriu, no lugar do buraco que escavara, uma fonte de água límpida e cristalina, ladeada por árvores e arbustos, correndo tranquilamente por um sulco traçado pelos seus próprios pés, na direcção da sua casa.

Caivlan seguiu o trilho da água, que terminava no fosso circular do santuário, agora coberto por plantas e pequenos bolbos de flores brancas, criando um halo de harmonia e beleza que comoveram o seu coração. Ali se ajoelhou e quedou em profunda meditação, até o sol se pôr. Ao nascer do sol do 70º dia, a voz do seu coração disse-lhe "Caivlan, tu já não és preciso aqui." Durante seis dias meditou sobre o que fazer. Então, ao sétimo dia, tomou o bastão negro, calçou as sandálias carcomidas e pôs-se ao caminho, seguindo a direcção da estrada.

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