vadis
o bebé dormia o seu sonho azul de lua cheia entre suaves odores de rosmaninho. e ele velava-o com devoção, com emoção, com toda a esperançosa alegria de futuro ali posto, entre cada subtil expiração a fluir com a vida. a cada afago, rememorava a noite sangrenta, os gritos, os estertores, os impulsos animais da guerra atirando irmão contra irmão, espada contra espada, coração contra coração. e neste berço... a eternidade. porquê? porquê? porquê?, repetia para si mesmo, sem encontrar razão. pela glória? pela vida? pela liberdade? tudo lhe soava insentido e amargo. mesmo tendo vencido, tinha perdido. a paz seria a glória. o entendimento seria a vida. o respeito teria sido a liberdade. o bebé agitou-se um pouco, abriu e fechou as mãozitas junto ao queixo, exalou um pequeno suspiro e de novo mergulhou no seu sonho. vadis chorava o grande guerreiro rival, caído no solo lamacento sob a sua espada, benzido pela chuva copiosa daquele dia sombrio. chorava todos os homens perdidos na lama, arrastados pela corrente, atracados nas estacas do dique. o bebé esboçou um sorriso que se fez gargalhada e logo se desfez na penumbra do quarto. vadis sorriu com ele, ajeitou-lhe a coberta, beijou-o e saiu para a noite escura. precisava de andar. andar sem rumo, andar por quanto tempo fosse, andar e não parar. precisava regenerar essa batalha cruel no seu coração. perdoar os seus inimigos. perdoar a si mesmo. mas quanto mais caminhava sob a lua brilhante, mais os fantasmas da culpa assaltavam o seu frágil espírito. deu por si à porta da gruta do eremita. o velho sábio saiu ao seu encontro, cumprimentou-o com um gesto e disse «não devias ter abandonado o quarto do teu filho. não hoje!...» vadis não percebeu a insinuação. o filho estava em segurança. era ele a criança perdida sem rumo e perigosamente exposta à loucura... esboçando um sorriso apaziguador, estendeu ao eremita um ramo de rosmaninho. o velho agradeceu, entrou na gruta, preparou a infusão e logo estavam ambos em frente ao lume bebendo a tisana. o silêncio preenchia os espaços do turbilhão interior que o não largava. o velho falou então novamente «hoje é dia de velares o teu filho, porque foi por ele que chacinaste a tribo dos undus...» vadis meneou a cabeça confirmando vagamente aquela razão tão dubiamente firmada entre a aprovação e a acusação. vadis despediu-se do eremita com uma respeitosa vénia e rumou a casa. deitou o filho a seu lado e no compasso dessa infantil respiração sentiu dissolver, um por um, cada músculo, cada retesada fibra de dor, de amargura, de infelicidade. naquele pequeno ser, tudo era suavidade e doçura. prometeu a si mesmo conservar em si essa energia tão pura, tão clara, tão despojada da malícia do mundo. sonhou com a velha casa paterna, cheiros e sabores da sua mocidade, emoções de um coração benevolente. poderia ter poupado os undus. poderia ter invertido as regras e os códigos estabelecidos. talvez amanhã. talvez o seu filho. talvez noutro mundo.
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