paz

nasceu no silêncio.
entre lutas, gritos, compromissos
era um desabafo inconstante
uma perdidez dos olhos pelas paredes
uma ternura mansa pelo abandono ao real
era frágil e indizível
não se dava por ela
ninguém saberia contá-la
muito menos eu
nasceu na escuridão
abafada pela azáfama modorna
da minha vida, de todas as vidas
mesmo quando a luz se apagava
e um bocejar último descia as pálpebras
rumo ao destelhar dos corpos contra a terra
nasceu prematura, imatura, rebelde
numa quietude fervente
plena de estalidos internos
que acicatavam os vagabundos
e atordoavam os parvos
nasceu bela como a lua
nasceu pobre
nua
arrancando lágrimas à solidão
exasperando os meus passos
de encontro ao calor dos dias
e não sei porquê
ainda hoje não sei porquê
pus-me a segui-la
com toda a minha atenção
glosei o instante
em que a vida lhe soprou o olhar
na minha direcção
fiz de cada seu passo
o caminho em que me achava
nas dores de crescimento
apertei-lhe a mão
do riso e da alegria
comunguei como um crente
tornei-me em si evidente
de razão e coração
abandonei-me inconstante
navegando, naufragando
fui um tudo agora e sempre
tão fiel, tão inocente
que um dia me deu a mão
e esse gesto, como de resto
tudo em si sempre era
calado, despido, insondável
pôs-me a chorar estranhamente
e chorei, chorei, chorei tanto
tanta coisa nesse pranto
espasmo, caudal, mansidão
dor, saudade, ilusão
pedra, rio, vento, paisagem
esperança, abandono, coragem
fugaz sempiterna emoção
sem uma palavra que fosse
um olhar, só lado a lado
esvaído de história, memória
era livre e mais então
eu em mim compreendi
da busca, da espera
o acerto do tempo
a procurar comunhão.

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