d'O Lugar
Ele – Poderia agora ver-te?
Eu – Sim.
Ele – Tocar-te?
Eu – Sim.
Ele – Dizer o teu nome?
Eu – Não.
Ele – Quanto tempo
passou?
Eu – Não sei. Talvez
muito pouco. Ou talvez demasiado. O relógio não soa. Nada já soa. Tudo é
silêncio.
Ele – Quero chorar…
Eu – Também eu…
(Choram em silêncio,
frente a frente.)
Ele – Vê que nestas
lágrimas nos escorrem as almas… Preciso de ti…
Eu – Entra, mas entra de
mansinho, não devemos acordar o passado de rompante. Eu não resistiria…
Ele – Tenho medo… Tenho
medo desse para lá da porta… Hesito… Como uma criança… Diz-me que está tudo
bem…
Eu – Digo-te que a minha
pele respira. E isso é bom.
(Ele entra.)
Ele – Sonhei este momento
demasiadas vezes. Sonhei entrar aqui como um pássaro, voando, até pousar no teu
colo. E no entanto, agora, sinto-me pesado, pesado, como chumbo. Arrasto as
minhas magras forças para dentro dos cheiros, dos espaços, dos objetos… Tudo me
fala estridente, demasiado rápido, demasiado forte, temo soçobrar à passagem…
Eu – Sonhei este momento
demasiadas vezes. Sonhei que te recebia como uma flor, reluzente em pétalas de
ouro e de aroma carmim. E no entanto, agora, sinto-me opaca, baça, como uma
névoa. Espalho-me na soleira da porta, rente aos teus pés, atravessando tronco,
olhos, cabelo… Tudo cala fundo, demasiado fundo, é tudo tanto silêncio…
Ele – Se te contasse…
Eu – Hás de contar-me …
Ele – Se te mostrasse…
Eu – Hás de mostrar-me…
Ele – Gostaria que o cuco
voltasse a cantar…
Eu – Daremos corda a esse
relógio…
Ele – Já não sei quem
sou. Fiquei em ti.
Eu – Ficámos prisioneiros
da estação. No pico da dor. No sal das lágrimas. Mas o brilho das estrelas
guardou o sabor da nossa pele. Não tornaremos, porque não se torna nunca. Mas
amolaremos a dor em novo riso. E secaremos as lágrimas em lume brando, à
lareira.
Ele – Gosto tanto de ti.
Agora tenho que ir.
Eu – Eu sei. Da próxima
vez, traz o cesto das lembranças, deixa que de novo nos cante a sua canção…
(in «O Lugar», processo)
Comentários