A tábua

Encontrou aquela tábua numa loja. Na altura, não a podia comprar. E os dias passaram. De vez em quando, lembrava-se da tábua, na loja, à sua espera. E esperava também por ela.

Um dia, passados muitos dias, passado mais de um ano, entrou na loja resoluta e comprou a tábua. A sua alegria era imensa, incomensurável, desmedida. Um orgulho por 'finalmente!', a profunda paz da devolução. Pois naquela altura, a tábua era dela mas ela também era da tábua.

Realizou que se tinha preparado para ela. Sim, sonhando-a, mimando em si essa existência e o que ela lhe traria e significaria. Caminhando nas ruas, com a tábua oscilando no saco, sentia-a já um ente poderoso, um oráculo, um guardador de sonhos e memórias por vir. Afinal, a tábua era de madeira, de uma madeira grossa e forte, com os seus nódulos e veios, as suas linhas mágicas, linhas de uma árvore mágica, só podia ser.

Chegou a casa, tirou a tábua do saco e colocou-a sobre a bancada da cozinha. Ficava mesmo bem. As crianças vieram e viram e celebraram a novidade. Cortaram-se os legumes para a sopa. As tiras de cenoura no entretém da janta. A gata deitou-se nela a dormir. E a noite veio.

Passaram, desde então, muitos dias, muitas noites. A tábua acolheu o corte do pão, do queijo, da fruta fresca, dos legumes para a sopa, da carne e do peixe, pedaços de papel, cartão, cortiça e que mais; o arranjo das flores, roupa do estendal, sacos de compras pesados, muitos tachos de comida quente, um sem fim de loiça para lavar; sentiu o servir do café da manhã, o espremer de laranjas e limões, o empratar das iguarias todas. Nela se lançaram feijões, grãos, sementes, botões, fitas, fios, elásticos, peças de lego, playmobil e puzzles, pregos, parafusos, rolamentos de skate, pomadas de calçado, pratas para arear, infusões e xaropes. A tábua ouviu conversas, risos, choros, gritos; amparou corpos suados, explosões de alegria e prazer, brincadeiras de criança, incursões juvenis, a azáfama dos dias de festa, as densas noites de insónia, momentos de desamparo, dor e solidão... E ficou também no seu quê de silêncio, apenas os sons lá fora, o passar da gata e as cambiantes de luz atravessando o dia-noite-dia.

De cada vez que acordava, chegava à cozinha e topava com a tábua, ela sentia dentro de si uma alegria terna, suave e doce, algo muito subtil mas que se espalhava ao seu redor, avivando o desígnio de fazer daquele dia um dia especial e único; cortava o pão com mais amor, o queijo com mais delicadeza, servia o café com mais esperança. Às vezes, mesmo, as lágrimas escorriam-lhe da face, ao pensar que uma coisa não é nunca e só uma certa coisa, com a sua utilidade, pode ser uma coisa imensa, carregada de poder simbólico, que nos impele a ser mais e melhor, a fazer mais e melhor, a cumprir os nossos dons, receber todas as bênçãos e celebrar, a cada tempo, a dádiva de viver.

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